Aos
38 anos, uma mulher reflete obsessivamente: afinal, deseja ou não um bebê? A
dúvida é o tema central de “Maternidade”, livro da escritora canadense Sheila
Heti, que acaba de ser confirmada como atração da próxima Festa Literária
Internacional de Paraty (Flip). Com Euclides da Cunha de homenageado e
convidados como Kristen Roupenian, Walnice Nogueira Galvão e Kalaf Epalanga, o
evento acontece de 10 a 14 de julho.
Lançado agora no Brasil pela Companhia das
Letras, “Maternidade” acrescenta um ponto de vista racional à questão,
frequentemente marcada por forte carga emocional e cultural.
— Decidir não ter um filho é uma escolha
tão positiva quanto a de ter um filho — pondera a autora de 42 anos, que já
escreveu oito livros e não tem filhos.
Por e-mail, Sheila falou sobre
diferentes aspectos da maternidade, condenou a chamada maternidade compulsória,
um tema acalorado Ocidente afora graças ao escrutínio de gerações de
feministas, e preferiu não comentar a própria experiência.
Em seu livro, questiona: “Viver de um jeito
não é uma crítica a todos os outros jeitos de viver. Será que é essa a ameaça
que a mulher sem filhos apresenta?”
A protagonista de “Maternidade” é consumida
pela dúvida entre ser mãe ou não. Essa questão deveria ser tão central na vida
das mulheres?
Eu não diria que deve ser, nem que não
deve. O que eu queria olhar é o que acontece quando alguém tenta responder a
essa pergunta de maneira aprofundada, com a questão no centro de seu campo de
visão. Os grandes temas da nossa vida — nosso trabalho, a cidade em que
vivemos, quem se torna nosso parceiro, de quem nos separamos — têm suas
dinâmicas, acontecem conosco ou fazemos nossas escolhas inconscientemente.
É possível que essa decisão seja puramente
racional?
Eu queria ver que pensamentos surgiriam se
este fosse um assunto de real consideração intelectual. Não vi isso antes na
literatura. Esses pensamentos são muitas vezes circulares e confusos. Deve ser
a questão mais importante da vida da mulher? Não. Mas deveria ser levada a
sério a possibilidade de que não é preciso ter filhos para se ter uma vida
gratificante? Sim.
Ao problematizar sua tendência a rejeitar a
maternidade, a personagem chega a recorrer ao “I-ching” para se decidir.
'Não tem como explicar para outra pessoa o
que é a maternidade', diz Karine Teles, de 'Benzinho'
Ela lança moedas para obter um “sim” ou um
“não”, recorre ao tarô, conversa com um médium na rua... Volta-se para todos
esses dispositivos místicos e aleatórios, porque acho que é o que muitos de nós
fazemos quando confrontados com um futuro misterioso ou um dilema insolúvel. É
claro que ela não confia completamente em nada disso. Mas há uma parte arcaica
dela que procura por sinais e símbolos no mundo. Precisa disso, porque as
mulheres que realmente não querem filhos ouvem que estão erradas, que não
deveriam confiar em si mesmas.
Questionar-se sobre a maternidade
compulsória faz dela uma feminista? Você se considera uma?
Eu me considero uma feminista, sim. Se a
personagem o é, não importa. Trata-se de uma mulher tentando entender sua vida
por um enquadramento que ainda não existe. Não através da retórica do feminismo
ou do marxismo ou de quaisquer outras estruturas intelectuais. Mas é claro que
ela nem estaria na posição de poder se perguntar se quer ou não filhos se não
fosse pelo feminismo e pelo trabalho de gerações de feministas.
A personagem chora todo dia. Poderia ser
descrita como uma pessoa com quadro depressivo?
Não penso na vida dela dessa forma, embora
a depressão nela seja um dado. Sua depressão vem de uma sensação de inércia:
não saber o que fazer é pior do que apenas escolher um caminho e descer e
abraçar todas as coisas terríveis e maravilhosas que vêm com qualquer escolha.
Mas ela está presa, parada. E carrega a depressão da mãe e da avó. O livro é
muito sobre o que herdamos e, como neta de sobreviventes do Holocausto, seu
sangue tem uma tristeza que vai além de suas circunstâncias pessoais.
Ela se sentiu abandonada pela mãe. De
alguma forma isso a influencia a não querer um bebê?
Eu não acho que decidir não ter um filho é
sinal de uma perturbação ou uma patologia. É uma escolha tão positiva quanto a
de ter um filho. Não há algo de errado nela; isso nunca me ocorre quando vejo
mulheres sem filhos.
Por que as mulheres que não querem ser mães
não são deixadas em paz, em pleno século XXI?
Acho que sua pergunta anterior mostra por
quê: mulheres sem filhos são consideradas danificadas de alguma forma. Acham
que foram traumatizadas, ou que falta algo essencial em sua feminilidade ou
humanidade.
Como tem sido para você?
Estou tão feliz com a minha vida quanto
qualquer um. O que significa, por vezes, estar em paz com as escolhas que me
trouxeram até aqui, e, outras vezes, não. Sentiria o mesmo se tivesse filhos. A
vida de alguém nunca é uma construção perfeita na qual todas as perguntas são
respondidas para sempre. Não acho que há algo que você possa dizer sobre todas
as mulheres sem filhos, nem sobre todas com filhos. Nós não dizemos que homens
que não são pais são todos iguais de alguma forma fundamental.