segunda-feira, 22 de julho de 2019

Marte, o próximo salto gigantesco da Humanidade

Em 1938, Orson Welles provocou pânico nos Estados Unidos com a transmissão radiofônica de sua dramatização de “A guerra dos mundos”, do escritor britânico H.G.Wells, que conta a invasão da Terra por marcianos. Cem anos depois, são os humanos que pretendem “invadir” Marte , com planos de uma primeira missão tripulada para o planeta vermelho na década de 2030. Mas transformar ficção em realidade será uma tarefa difícil, um salto gigantesco muito maior e mais complexo do que o que levou o astronauta americano Neil Armstrong a dar seu “pequeno passo” na Lua 50 anos atrás, na missão Apollo 11 .

Desafio que começa com a distância. Se a Lua, a cerca de 400 mil quilômetros, parecia impossível de alcançar, Marte, que no ponto de maior aproximação da Terra chega a 54,6 milhões de quilômetros, é um destino no mínimo 136 vezes mais longínquo, o que vai demandar não só foguetes bem mais poderosos como naves maiores, mais avançadas e blindadas para proteger os astronautas no longo caminho até lá.

— O primeiro desafio é a massa. A carga que teremos que lançar para lá é muito grande — diz o físico Luiz Alberto Oliveira, curador do Museu do Amanhã, que desde março e até outubro promove o ciclo de palestras “Hackeando Marte”, uma discussão dos obstáculos e alternativas para os humanos chegarem e viverem no planeta vermelho. — Para lançar uma nave com pessoas, suprimentos, combustível e tudo mais vamos precisar de foguetes superpoderosos, muito maiores do que os que temos hoje.

Ida em etapas

Assim, é provável que todo processo seja feito por etapas, com missões em série que primeiro levarão equipamentos e suprimentos para a órbita e a superfície de Marte e só depois enviar os astronautas. Procedimento similar ao que será usado, e testado, com o projeto Ártemis , que pretende colocar pessoas, entre elas a primeira mulher, na Lua em 2024, com a construção, inicialmente, de uma estação orbital e, depois, de uma base no Polo Sul lunar.

Mas a grande distância traz outros obstáculos. O fato de Marte percorrer sua própria órbita em torno do Sol (diferentemente da Lua, que “acompanha” a Terra) restringe as chamadas “janelas de lançamento”, os períodos em que as posições relativas de nosso planeta e o planeta vermelho permitem uma viagem mais eficiente em termos de energia e tempo – e assim necessitando de menos combustível e suprimentos, ou seja, massa.

— Ao proporcionar viagens mais curtas, estas janelas de oportunidade também ajudam a reduzir outro problema: a exposição dos astronautas à radiação solar no espaço, que no acumulado de meses pode ter efeitos sérios de saúde, como o câncer, e, em última instância, matá-los por envenenamento radioativo — destaca Oliveira. — São várias as propostas para enfrentar isso, mas em todas, quanto maior a proteção, maior o peso, a massa da nave, e aí voltamos ao primeiro desafio, do tamanho dos foguetes lançadores.


CAMINHO PARA MARTE
São duas as principais opções para uma missão tripulada de ida e volta, uma mais longa e outra mais curta. Ambas, no entanto, dependem de Marte e a Terra estarem em posições relativas específicas nas suas órbitas em torno do Sol, num alinhamento que abre as chamadas “janelas de lançamento”

MISSÃO LONGA
A viagem mais eficiente em termos de energia, e portanto a que precisa de menos combustível e/ou foguetes não tão poderosos, emprega uma trajetória conhecida como “órbita de transferência de Hohmann”

Ida
Em forma de elipse, ela tem o Sol em um de seus focos e Terra e Marte em posições orbitais opostas na órbita na partida daqui e chegada lá. Sua utilização permite viagens de 120 a 270 dias para ida e volta cada
Volta
Permanência obrigatória de 400 a 600 dias no planeta, usando “janelas de lançamento” que se repetem aproximadamente a cada 780 dias, o chamado “período sinótico” de Terra e Marte

MISSÃO CURTA
Com foguetes mais poderosos, menores limitações de gastos de combustível e permitindo velocidades maiores, além de eventuais envios prévios de equipamentos e suprimentos para a órbita dos dois planetas e a superfície marciana, é possível traçar rotas mais diretas e reduzir o tempo total da missão para menos de 245 dias
Ida e volta
Neste caso, chegada e partida de Marte se dariam quando o planeta estivesse em conjunção com a Terra, isto é, na maior aproximação do nosso
A viagem de ida levaria 120 dias, com os astronautas passando duas semanas em Marte e retornando à Terra em mais 75 dias

Mais desafios na superfície

E mesmo vencidas estas dificuldades, restam muitas outras a superar. A começar pelo pouso. Diferentemente da Lua, que não tem atmosfera, Marte tem uma. Embora muito tênue — cerca de 1% da densidade da atmosfera da Terra —, ela exercerá pressões aerodinâmicas na nave, exigindo alterações, ou mesmo um desenho completamente diferente, dos sistemas que serão usados e testados no programa Ártemis.

— E Marte ainda é um ambiente extremamente agreste, uma combinação de Antártica, Deserto de Gobi e Himalaia: muito frio, muito seco, muito poeirento e de baixa pressão atmosférica, com o agravante de também não ter um campo magnético global protetor como o da Terra, o que mantém a exposição à radiação solar como um problema — lembra Oliveira. — Sem a proteção de trajes especiais e habitats artificiais, não há como sobreviver lá, então teremos que levar ou tudo pronto daqui ou construir a infraestrutura com os recursos de lá.

No primeiro caso, mais uma vez as limitações de massa serão um obstáculo, o que faz do projeto Ártemis de volta à Lua um importante ensaio da viagem a Marte.

— Uma das primeiras ideias era usar partes do veículo lançador, ou a própria nave, para isso, mas aí teríamos novamente uma massa, e tamanho, limitados — destaca Oliveira. — Mas se construirmos a base com recursos de lá, como, por exemplo, fazendo uma argamassa com a poeira do solo, podemos ter estruturas muito maiores e mais protegidas.

Sem água, nada feito

Por fim, outro recurso que será fundamental obter em Marte — e na Lua — para sustentar a presença humana é água. Não só para beber, mas também para separar em hidrogênio e oxigênio que servirão de combustível para as viagens de volta e, no caso do segundo, para respirar.


— É essencial que haja água utilizável nos locais escolhidos para descida tanto na Lua quanto em Marte — conclui Oliveira. — Só assim poderemos levar um pedacinho da Terra, de nosso bioma, para lá. Se quisermos deixar de ser apenas terráqueos e viver em outros mundos, não seremos apenas nós, os humanos, que teremos que nos adaptar. Vamos precisar cultivar alimentos e desenvolver tecnologias que nos permitirão não só sobreviver lá como reformar nosso modo de viver na Terra. Com as mudanças climáticas e outros tantos problemas de nosso mundo agora, de certa forma Marte também é aqui.



Terra e Marte lado a lado: tecnologias desenvolvidas para viver lá tambem podem ajudar a enfrentar os problemas aqui Foto: Nasa/ESA

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